quinta-feira, dezembro 21

O que me apraz dizer sobre o Natal

Eis o meu silogismo de Natal:
Natal é quando o homem - e a mulher - quiser,
O subsídio que se recebe agora é o subsídio de Natal,
Logo, o subsídio de Natal é quando o homem - e a mulher - quiser!
Nasci para a lógica!

Não gosto do Natal. Não gosto porque está frio, as pessoas empanturram-se do que há de melhor e aqueles que todo o ano sofrem porque estão sós, porque não têm comida, onde dormir, as crianças em orfanatos, os animais na rua, ficam ainda mais sós. Não gosto do Natal porque ele devia ser a comemoração de um ano bom, e não o momento de balanço de um ano mau, o que se repete para mim de alguns anos a esta parte. Não gosto do Natal porque Natal é uma família perfeita, e a minha há muito que deixou de o ser. Não gosto do Natal porque Natal são prendas. Não gosto de gastar dinheiro que não tenho a oferecer o que não quero, a quem não queria. Não gosto do Natal porque me deixa triste. Não gosto de estar triste. Não gosto do Natal porque não sou mãe. Logo, não tenho olhos radiantes a viverem a consoada como todos já a vivemos. Só os meus e daqueles que teimam em continuar comigo! Não gosto do Natal porque o Natal significa paz, e eu não a tenho. Não gosto do Natal porque Cristo é sofrimento, e eu não gosto dele. Não gosto do Natal porque não tenho qualquer fé, em Deus, na religião ou em vida para além da morte. Logo, não celebro o nascimento de ninguém, a não ser de familiares e amigos que me dizem alguma coisa. Não gosto do Natal e pronto!

1 comentário:

Anónimo disse...

O camentário que se segue é de ines pedrosa, quem sabe se te faz bem:
Chamava-se Sara
*CHEGAVA ao infantário com os dedos cortados, manchas negras no corpo, a
tremer de frio dentro da roupa demasiado escassa e pedia pão. Comia
sofregamente, o dobro das outras crianças. Não se ria nem sabia brincar. Ao
fim do dia regressava à câmara de horrores que era a casa dos seus autores
biológicos: ficava refém da mulher de cujo ventre nascera e que a espancava
e fazia passar fome e frio. Chamava-se Sara e não chegou a completar trinta
meses de vida: morreu devagar, sofrendo torturas diárias. A progenitora já
confessou que de facto espancou a criança e a lançou pelas escadas abaixo,
mas «sem intenção de matar». Também não terá tido intenção de matar Sara a
pessoa da Comissão de Protecção de Crianças e jovens que, alertada no
passado dia 4 de Dezembro pela educadora do infantário das marcas de
violência visíveis no corpo da menina, agendou uma
visita à casa da família para o dia 28 - ou seja, para daí a 24 dias... Terá
pensado o quê? Que as crianças são muito resistentes? Que as educadoras de
infância são exageradas? Que estas coisas podem esperar para depois do
Natal?

O progenitor masculino de Sara alega não ter dado por nada:
saía cedo e entrava tarde, diz ele, trabalhava muitas horas, o que é
certamente bom para o País e melhor para ele, que continua a não dar por
nada, em liberdade. Uma criança de dois anos espancada e esfomeada dá pouco
nas vistas. E não se ouve: lançada das escadas, confessou a mãe. A
vizinhança estaria toda a trabalhar enquanto estes actos ocorriam? Tanta e
tão serena produtividade naquelas bandas de Monção. O choque tecnológico no
seu máximo esplendor.

A família estava já assinalada como «de risco» desde 2005 na Comissão de
Protecção de Menores de Viseu, onde então habitava, e Sara chegou a viver
três meses com a avó paterna - mas a presidente da referida Comissão, Maria
do Carmo Sá, entendeu que o lugar da criança era junto dos progenitores, e
retirou-lha. Há um ano, outro bebé, Fátima Letícia, entrara em coma depois
de seviciada pelos pais - embora o seu caso também estivesse referenciado,
na mesmíssima Comissão.

Por outro lado, os irmãos de Sara andavam agasalhados e sem marcas de
violência. É estranho, comentam agora as pessoas. Já enquanto Sara era viva
estranhavam, uns com os outros, pacatamente, essa diferença - estranhavam
Sara, quero dizer. Porque se havia mais três e eram bem tratados, o problema
devia estai em Sara, O problema é sempre das vítimas, e as meninas, sendo
mulheres em miniatura, são, desde logo, especialmente perversas. Mini-saias,
sorrisos amplos, ou a recusa de certas tarefas domésticas têm aparecido em
acórdãos de tribunal como atenuantes para crimes de violação ou de homicídio
de mulheres, As pessoas terão pensado que Sara se portava pior do que o
irmãos, e por isso era maltratada pelos pais. Naturalmente. A determinação
das pessoas para o pensamento ou para a compaixão só é ágil depois da
tragédia. Quantos dos chorosos participantes no funeral de Sara não a terão
ouvido chorar desesperadamente em vida?

*São cem mil as crianças portuguesas em risco *

É mais fácil pretender amar uma criança morta do que amar uma criança viva.
Segundo o «Correio da Manhã», que esteve lá e ouviu (é essa a missão do
jornalismo: ir de facto aos sítios, ver, ouvir e transmitir), na homilia da
missa de corpo presente de Sara, o padre José Carlos Matos perguntou: «Que
Estado é este que não se importa de gastar dinheiro com a morte, permitindo
o aborto, e não tem dinheiro para preservar a vida?» O comum dos mortais
talvez não perceba a relação entre o dinheiro, o aborto e a morte de Sara.

Eu percebi duramente a que ponto chega o desrespeito da Igreja Católica
pelos mortos e pela dor dos próximos, quando, há oito anos e meio, em vez de
palavras cristãs de consolação e alento, recebi uma sessão de campanha do
referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez, ao lado do caixão do
meu pai. Nessa época tive a ingenuidade de pensar que tínhamos tido azar com
o padre. Mas quando este Natal vi, na RTP, o cardeal patriarca utilizando o
nascimento de Jesus Cristo como trampolim acrobático para chegar à
condenação dos que defendem a despenalização da interrupção voluntária da
gravidez, percebi finalmente que na religião, como infelizmente na política,
os fins justificam os meios, e os sentimentos das pessoas são explorados sem
qualquer pudor.


Sara merecia ter entrado no Céu - tem de haver um céu que faça justiça a
estas crianças - com as palavras carinhosas e sábias que o menino Jesus
teria para ela, se ainda andasse por este mundo. São cem mil as crianças
portuguesas em risco. Quantas estarão a ser torturadas no preciso momento em
que escrevo esta frase? Sempre que um adulto é feito refém, em Portugal ou
no estrangeiro, o Estado defende-o, como é sua obrigação. As crianças,
continua a tratá-las como propriedade dos que as fizeram nascer. Se o
inquérito à morte de Sara resultar em nada, como todos os outros,
mobilizemo-nos para processar o Estado. Neste ano novo, temos de ser capazes
de dizer: Basta.

*INÊS **PEDROSA *

Expresso 6 Jan. 06