quarta-feira, janeiro 31

ponto de vista... ou mais que isso?

Tinha prometido a mim mesma que não me ía deixar envolver nesta contorvérsia SIM/NÃO que abala o país. Tinha aliás prometido que só iria falar (leia-se, escrever) sobre o assunto se não o pudesse evitar. Não porque não me envolva intelectualmente no assunto. Conheço muitos dos argumentos que têm sido esgrimidos nos últimos tempos sobre o assunto e os que não conheço, não conheço apenas por falta de oportunidade. Falo agora porque me choca por um lado a ignorância, por outro, o excesso desmedido de construção filosófica sobre um assunto que, seja de que lado for a visão, é simples.
Sou a favor do Sim. Sou a favor do Sim por muitas razões, mas porque não se trata de uma monografia e muito menos de um ensaio de tese, sou a favor do Sim à despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas por desejo da mulher grávida por uma razão simples: porque o ser humano é racional. Se estivéssemos a falar de uma gata que engravida porque não conhece o sexo sem filhos, então seria a favor do Não. Seria a favor do Não porque a pobre da gata a cada relação sexual estaria a fazer um aborto! Se estivéssemos a falar de um ser irracional, então eu seria a favor do Não, porque se tratava de natureza, pura e simples, da mesma forma que me choca quem afoga os recém-nascidos gatos porque não os quer, porque seriam um transtorno, porque quem manda é o dono dos referidos gatos.
Sou a favor do SIM, porque, por mais voltas que se queira dar à questão, ela é muito simples, e quem vos fala agora é a jurista: no Código Penal existe um artigo que diz que é crime o aborto praticado a «pedido» da mulher, e se esta for condenada por tal acto, poderá ser-lhe aplicada uma pena máxima de prisão de 3 anos, que pode e tem sido suspensa nos poucos casos julgados.

ARTIGO 140º do Código Penal
Aborto
1. Quem, por qualquer meio e sem consentimento da mulher grávida, a fizer abortar, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2. Quem, por qualquer meio e com consentimento da mulher grávida, a fizer abortar, é punido com pena de prisão até 3 anos.
3. A mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto próprio ou alheio, se fizer abortar, é punida com pena de prisão até 3 anos.


Duas consequências práticas desta constatação: a mulher é uma criminosa se abortar (a mulher passa a ter um registo criminal onde consta o crime de aborto) e portanto para futuro deixa de ser uma pessoa primária em termos penais; a mulher se for condenada ainda que com pena suspensa tem durante 3 anos uma pena que pode ser executada a qualquer momento, isto é, se praticar um crime esta suspensão pode tornar-se efectiva. Em termos criminais, a mulher é uma pessoa que cometeu um crime, como se tivesse roubado, traficado droga, etc!

O Código Penal (desde 1997) tem execpções à regra "o aborto é crime". Estão no:

ARTIGO 142º
Interrupção da gravidez não punível
1. Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:
a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;
b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação, e for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez; ou
d) Houver sérios indícios de que a gravidez resultou de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez.
2. A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.
3. O consentimento é prestado:
a) Em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo e, sempre que possível, com a antecedência mínima de 3 dias relativamente à data da intervenção; ou
b) No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz, respectiva e sucessivamente, conforme os casos, pelo representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer parentes da linha colateral.
4. Se não for possível obter o consentimento nos termos do número anterior e a efectivação da interrupção da gravidez se revestir de urgência, o médico decide em consciência face à situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros médicos.


Assim sendo, nestas circunstâncias pode-se praticar o aborto legal. Cai por terra o argumento absoluto "feto é vida". Se esta verdade fosse absoluta, o art. 142º não existia. Parece que o legislador quer ponderar valores sociais importantes quando deixa abortar às 12 e 16 semanas em situações moralmente repugnantes, como a violação ou a saúde física e moral da mãe. Afinal, a mãe tem alguma importância, não é só reprodutora. E já agora, o que é perigo para a lesão psíquica da mulher? Pois, não sabemos. Talvez por isso, que eu tenha conhecimento, ninguém se desloca à Maternidade Alfredo da Costa e diz que quer abortar porque uma gravidez indesejada a afectará psicologicamente para sempre. Conhecem? E um médico que tenha dito: sim senhora, vamos a isso, passo-lhe já um atestado! Também não. Pois para já isto é utópico. E ficamo-nos por aqui. Ora se em termos práticos não se pode abortar em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, então resta-nos a clandestinidade. E a clandestenidade tem aquele eterno problema: falseia a concorrência e torna a oferta cara. Por isso abortar com um médico é para quem pode actualmente. As outras, abortam com enfermeiras parteiras em vãos de escada. Por isso o acompanhamento psiquiátrico ao aborto é nulo e por isso as complicações físicas são mais que muitas.
Esgrimida em pinceladas (tendenciosas, talvez) a realidade vamos ao futurismo.
O que se propõe é tornar o que se pratica de forma ilegal em algo que é legal. Não considero que este argumento se baste em si mesmo. Seria uma péssima jurista se assim fosse. O Direito segue a sociedade mas serve os interesses de ordem e manutenção da paz social antes de mais. A moral dita o direito. Todos roubamos (ou tentamos roubar) o Fisco: mate-se o Fisco! Claro que não. Propõe-se com este referendo chamar os portugueses a uma decisão simples: vamos acrescentar no Código Penal algo do género: até às 10 semanas (altura embrionária da gestação de uma vida humana), a mulher tem o poder de decidir se essa gravidez é desejada ou apenas fruto das leis da reprodução animal! As simple as that! Esse poder ela tem. Basta tomar a pílula do dia seguinte, ou ir a Espanha e fá-lo. Mas deve esse acto continuar a ser um crime em Portugal? Independentemente da discussão em torno das 10 semanas, em termos clínicos, que na realidade não me interessa nem um bocadinho, a questão é: vamos tornar legal o que é incontornável, o que sempre existiu e existirá, por racionais que somos? A pergunta é esta, vamos despenalizar, não liberalizar!, o aborto? Despenalizar significa tirar a pena. Como não há crime sem pena aplicável, despenalizar significa descriminalizar o aborto. Se o vamos liberalizar ou não, isso depende da evolução social que daí advenha. Não me parece que a moral vigente queira uma liberalização da interrupção voluntária da gravidez. Mas parece-me que a hipócrisia de um crime apenas no papel tem de acabar. É que não se deixa de condenar as mulheres actualmente porque não se consegue apanhar ou provar, não se condena porque a moral de todos, maxime, dos juízes, não o permite.
Há uns anos a simples posse de drogas leves era crime, hoje não o é, até um certo limite. Antigamente o adultério era um crime. Hoje não o é. Trata-se tão simplesmente de levar o direito com a evolução desta comunidade. A minha avó, nascida nos anos 30, católica, fez abortos, vários. A minha mãe, nascida nos anos 50, fez aborto, antes de eu nascer. Uma das minhas melhores amigas de adolescência, nascida nos anos 70, fez um aborto aos 15 anos, sem conhecimento dos pais e com a minha ajuda e do namorado (hoje marido). Pagou-se 60 contos na altura. Lembro-me bem. Foi difícil para nós, um martírio para ela. Querem-me dizer que não o devia ter feito? Poupem-me! Falsos moralismos não. O aborto faz parte da civilização. O Homem decide se quer ou não ter filhos. Primeiro com métodos contraceptivos. Depois, quando execpcionalmente algo não corre bem, com o aborto, seja numa sala de operações, seja rebolando pelas escadas abaixo ou enfiando agulhas de tricôt na barriga. Qual a diferença? O estrato social.
Por isso, meus caros, sou a favor do Sim à despenalização, o Sim ao direito da mulher em decidir ter ou não um filho, ainda que isso represente o início de discussão e não o fim. É que havendo despenalização então tem de ser regulamentado o acesso ao aborto, e isso passa não só pela orçamentação do aumento expectável desta prática cirúrgica nos nossos hospitais, como pela necessidade de acompanhar esta decisão, sobretudo quando a mesma se repete na vida de uma mulher. Concordo que o aborto não é uma forma de contracepção em si mesma, mas discordo que a decisão alguma vez deixe de ser da mulher, do casal (quando este funcionalmente existe) para passar a ser do médido ou da administração pública. Por isso há que criar uma rede de recepção, acompanhamento e registo das mulheres que passam por esta situação de forma evitar que a mulher se ampare nesta solução de forma continuada, não por questões económicas, mas porque é traumatizante e porque a morte, seja do que for, é o último recurso. Chama-se a isso, hoje, planeamento familiar! A diferença é que ele não se limitará a dizer à mulher para tomar precauções, ele vai acompanhar a vida sexual da mulher enquanto possível mãe. Chama-se a isto Estado Social de Direito.

Perdoem-me aqueles que se enfadaram a meio e que continuaram por carolice! Mas tinha de o dizer.

7 comentários:

Zé O Branco disse...

De mim podem dizer duas coisas...
Ou que vivo na sombra dos pensamentos desta mulher... ou que somos almas gémeas.

Eu não esplanaria melhor os meus pensamentos.

Texuga disse...

amo-te. simplesmente.

Preciouzzz disse...

assino em baixo!!!! gostei muito, muito mesmo!

morffina disse...

Muito bom post. Não só porque também são a favor da despenalização, mas também, pelo "layout" dos factos.
Pegando numa expressão que usou da minha língua materna "As simple as that" permita-me acrescentar: A simple rational decision is always hard to explain, especially when the irrational complexities invade its space. (Também pode denotar algum ateísmo, se assim o desejar, como o fez com o meu amigo "Sem Quorum" e até agradeço).

Já agora: Pleased to meet you!

Bernardo Santa Clara Gomes disse...

Bem, há muito tempo que não lia algo bem escrito, explicado e explanado!
Mas sofres do mesmo mal que eu. Nunca chegarás a um cargo político.
E isto pela unica razão que és directa e frontal.
Por carolice ou gostar de ler ou ainda gostar de ti, o certo é que li e reli o teu post!
Hoje digo, ainda bem que te conheci, pena tenho de não estares mais perto!
Beijo!

Texuga disse...

Pena tenho de TU não estares mais perto! Tu é que és insular, não sou eu...

Anónimo disse...

Eu não li o post que não me apetece mas deve ser bom... Pelos comments...